Para entidades e especialistas, é preciso que escolas tenham condições para o retorno

Um dia após derrota na Justiça, o governo do estado do RS alterou a cor das bandeiras para liberar aulas presenciais

Após viver o pior momento da pandemia, entre o final de fevereiro e todo mês de março, o Rio Grande do Sul começou o mês de abril mostrando sinais de melhora gradual, contudo ainda insuficientes para dizer que se pode liberar tudo ou que a pandemia esteja perto de seu fim. Apesar disso, o governo do estado, um dia após derrota na Justiça, mudou a classificação do modelo do Distanciamento Controlado e colocou todo território em bandeira vermelha, permitindo assim a volta das aulas presenciais. Para entidades, o retorno só pode ser feito se as escolas tiverem condições adequadas, além de uma massiva vacinação dos profissionais ligados à educação. 

“As crianças têm que voltar para as escolas, para as praças, voltar para as suas atividades lúdicas, tem que ter interação, eu não tenho nenhuma dúvida. Como pediatra a gente sabe que a criança está perdendo muito. O que eu questiono é esse momento. Por que tem que ser exatamente agora? A gente não consegue esperar um pouquinho mais?”, indaga o médico pediatra e professor adjunto do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), João Carlos Santana. 

Conforme pontua Santana, a discussão sobre o tema vem já de algum tempo e vários artigos foram divulgados pelo mundo alertando para a realidade do retorno às escolas e creches, levando em conta as taxas da doença covid-19, que em crianças foram sempre muito baixas. “Não se sabe se o vírus não foi tão agressivo nas crianças, ou se a transmissão não era tão grande. O que parece é que aquelas medidas de distanciamento físico ajudaram a diminuir as taxas de qualquer doença respiratórias, inclusive as bronquiolites, que são comuns na infância. No ano passado elas simplesmente não aconteceram, neste ano elas voltaram a aparecer”, pontua. 

Segundo ressalta o médico pediatra, embora a literatura médica mostre que na comparação com os adultos a pediatria foi muito pouco afetada, no RS cerca de 40 mil pessoas com menos de 19 anos foram atingidas pelo coronavírus. Foram mais de 250 hospitalizações, em que a taxa de mortalidade foi em torno de 6,7%.  

Taxa ainda é alta para flexibilizações

O RS tem no momento 1.829 pacientes confirmados com covid-19, representando 63,3% das ocupações em leitos em UTI. Só na Capital, o total de pacientes internados com covid-19 é de 544. “É claro que tem tido um declínio nos últimos 15 dias, e a taxa de ocupação está ficando em torno de 80/85%. Mas puxa vida, quase duas mil pessoas em CTI no estado ainda é uma taxa alta para dizermos acabou a pandemia, que podemos liberar tudo”, pondera. 

“É claro que a gente entende que as crianças realmente tem que socializar, só que estamos em plena pandemia, está recém melhorando. Por que a gente vai mobilizar ônibus, transporte, as pessoas das escolas, enfim? Pode ser que as crianças não transmitam tanto, que transmitam muito menos do que se imagina, mas mobilizar isso tudo… por que a gente não espera um pouquinho mais? “, reforça Santana. 

Apesar do momento apresentar uma certa esperança, o professor destaca que os cuidados devem continuar e que a vacinação tem que ser progressiva e quantitativa. “Me preocupa muito esse momento em que a gente, por ter uma esperança, pode liberar os regramentos sociais. Não tem que liberar nada de regramento. É distanciamento, lavar as mãos, usar máscara, procurar não aglomerar”, frisa. 

Preocupada com a questão, a reitora da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), Lucia Pellanda, afirmou na reportagem do Sul21 que o debate em torno da volta às aulas presencias é um tema difícil e carregado emocionalmente. Segundo afirmou à reportagem, não tem dúvida de que abrir as escolas nesse momento aumentará o número de novos casos no ambiente de ensino.

Lúcia aponta que outros comércios não essenciais deveriam fechar para diminuir a mobilidade nas cidades. Depois de um ano de aulas presencias suspensas, a reitora da UFCSPA afirma que o retorno não deve ser feito com pressa. “A esperança não é uma estratégia efetiva para lidar com a pandemia. Temos que nos preparar para ter casos de contágio na comunidade escolar. É isso que queremos?”, questionou a reitora. 

Escolas precisam ter estrutura 

Para Santana, no cenário de um retorno das aulas, as escolas precisam de ambiente ventilado, não podem ser absolutamente fechadas, tem que garantir o distanciamento físico, com sanitarização do ambiente, com uso de máscara e higienização constante de mãos. “Professoras, professores e todos os profissionais que trabalham nas escolas, minimamente para começar a trabalhar têm que ter uma taxa de vacinação bem elevada, ou seja, vacinação para todos. O ideal seria que essas crianças pudessem ser testadas, ou que pelo menos tivessem um protocolo para quando as crianças apresentarem sintomas”, expõe o médico.

Ele acrescenta que além dos cuidados de vigilância epidemiológica, as crianças também terão que passar pelos cuidados pedagógicos. “A gente vai ter que receber e educar esses alunos e readaptá-los a essas novas regras, regras de convivência, de não aglomeração, de tentar se segurar para uma série de coisas, não compartilhar aquilo que eles sempre compartilharam, por exemplo. Além das famílias que terão que criar seus próprios protocolos, cuidar dos sinais, sintomas”, aponta. 

Realidade é de falta de recursos


A vacinação dos profissionais da educação é outro elemento importante para o retorno presencial das atividades / Assessoria do CPERS

As medidas locais apontadas por Santana, se chocam com a realidade observada nas escolas estaduais. Uma pesquisa desenvolvida em 2020 pelo CPERS – Sindicato, em parceria com o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Sócioeconômicos (Dieese), apontou que 90% das escolas gaúchas não têm recursos adequados para um retorno seguro. Realidade que de acordo com a presidenta do CPERS Sindicato, Helenir Aguiar Schürer, pouco ou nada se alterou. 

“As escolas continuam sem estrutura, temos o mais básico, que é a máscara para as crianças, contudo as que governo ofereceu são inapropriadas diante da nova cepa. Não temos recurso humano suficiente para a higienização. Temos escolas com ventilação inadequada, escolas em que as janelas não abrem, portanto sem ventilação nenhuma. E muitas que a própria estrutura não fornece a capacidade de distanciamento dos alunos, com corredores muito apertados, que na circulação das crianças não será observado o distanciamento de 1,5 metros. As estruturas das escolas não estão prontas para receber os alunos”, ressalta a presidenta. 

Mudança da bandeira: “jogada política”

Ao anunciar a mudança das bandeiras, o governador do estado, Eduardo Leite (PSDB), afirmou que a educação era essencial. Para Helenir, se o segmento fosse realmente considerado essencial, a vacinação dos professores já estaria acontecendo, assim como ocorre em São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia. De acordo com ela, o CPERS – Sindicato vê a atitude do governador ao mudar a bandeira para possibilitar o retorno das aulas como uma manobra de desrespeito do governo ao judiciário.

“O governador mudou a bandeira sem consultar o Comitê da covid estadual, sem apresentar números que realmente demonstrassem queda das internações, na contaminação. Não apresentou nenhum parâmetro para isso, simplesmente uma jogada política, tenta passar para bandeira vermelha para descumprir aquilo que o TJ julgou”, avalia.  

De acordo com a dirigente, o jurídico da entidade analisará o decreto para posteriormente entrar com uma ação. “O sindicato continua defendendo a vida, nossas ações são todas para preservar a vida dos trabalhadores em educação, assim como de todos os nossos alunos. Temos um estudo que indica que cerca 2.060 crianças já morreram no Brasil por causa ds covid. Não podemos brincar com a vida, dia 3 de maio teremos uma grande assembleia no nosso sindicato para discutirmos essas questões e tirar posicionamento do que faremos após isso”, comunica Helenir. 

Entidades lançam nota sobre a decisão do governo 

O Comitê de Crise de Volta às Aulas RS, que reúne entidades da educação, assim como a Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul (Famurs), lançaram nota comentando a decisão do governo do estado. 

Para o Comitê, a decisão se trata de mais uma “escancarada manobra para burlar a decisão judicial” que determinou a suspensão das aulas presenciais, durante a bandeira preta, para os alunos da educação infantil e primeiro e segundo anos do ensino fundamental.

“A anunciada imediata liberação do retorno das aulas presenciais para todos os níveis de ensino, se confirmada, configurará verdadeiro atentado à vida de milhares de gaúchos. As entidades que esta subscrevem são favoráveis ao retorno das aulas presenciais desde que com total responsabilidade com o cenário do RS e dados científicos, somados à vacinação imediata dos profissionais da área da educação, melhorias na infraestrutura de escolas públicas e devida segurança sanitária”, destaca a nota.

Já a nota da Famurs destaca o autoritarismo e a a falta de diálogo do governo do estado. “Não podemos aceitar o falso diálogo, em que as decisões chegam prontas ou são anunciadas pela imprensa. Sempre fomos colaborativos com os demais entes federados em propostas relativas à pandemia do coronavírus, especialmente com o Governo do Estado. Queremos participar e ajudar. Construir coletivamente as melhores alternativas. Mas não podemos assumir responsabilidades que, neste momento, são do Governo do Estado. (..) Não se governa por decretos. E sim, democraticamente, construindo com diálogo, planejamento e responsabilidade, alternativas para sairmos desse impasse”, aponta.

Confira as notas das entidades

Nota do Comitê de Crise da Volta às aulas RS em face do anunciado novo decreto do governo gaúcho que instituirá a bandeira vermelha para todo o estado do RS 

É com perplexidade e indignação que o Comitê de Crise da Volta às Aulas RS recebe a notícia de que o Governo do Estado editará decreto nesta terça-feira, 27/4, modificando o modelo de Distanciamento Controlado e colocando todo o Estado do RS em artificial e ilegítima bandeira vermelha, liberando o retorno das aulas presenciais para de todos os níveis de ensino já para esta próxima 4ª feira.

Trata-se de mais uma escancarada manobra para burlar a decisão judicial que determinou a suspensão das aulas presenciais, durante a bandeira preta, para os alunos da educação infantil e primeiro e segundo anos do ensino fundamental, a qual foi reforçada na noite de ontem por unanimidade pelo Tribunal de Justiça do RS.

A modificação do sistema de salvaguarda, estratégia utilizada pelo Governador para mudança ilegítima de cor de bandeira, não encontra qualquer fundamento técnico que a justifique, pois de ontem para hoje nenhuma melhora ocorreu nos indicadores de ocupação de leitos de UTIs e de contaminação e mortalidade da doença que autorizem a referida mudança para a bandeira vermelha.

Em entrevista à imprensa, o Procurador Geral do Estado Eduardo Cunha da Costa afirmou, na manhã de ontem, dia 26/4, que o governo preferiu criar a cogestão na educação em razão de que não poderia simplesmente mudar a cor da bandeira, mexendo na regra da salvaguarda, pois isso seria equivalente a “dar uma curva” na Justiça.

Curiosamente, após ser derrotado no julgamento da 4ª Câmara Cível do TJRS, usa no dia seguinte exatamente a estratégia que na véspera condenara. É flagrante, portanto, a manobra e o desrespeito do Executivo com as decisões emanadas pelo Poder Judiciário.

O Comitê aguarda a edição do decreto para ingressar com as imediatas medidas judiciais cabíveis para barrar mais esta afronta do Governador ao Estado Democrático de Direito e à vida, pois as aulas somente estão suspensas em razão da gravidade da pandemia no atual momento.

A anunciada imediata liberação do retorno das aulas presenciais para todos os níveis de ensino, se confirmada, configurará verdadeiro atentado à vida de milhares de gaúchos!

Cabe ressaltar que as entidades que esta subscrevem são favoráveis ao retorno das aulas presenciais desde que com total responsabilidade com o cenário do RS e dados científicos, somados à vacinação imediata dos profissionais da área da educação, melhorias na infraestrutura de escolas públicas e devida segurança sanitária.

Escola Aberta na Hora Certa!

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(+ De 50 entidades da educação e 18 parlamentares gaúchos)

Nota da Famurs sobre os anúncios do governo do RS

Senhor Governador.

Mais uma vez somos obrigados a nos manifestar para registrar nossa profunda inconformidade com a conduta autoritária com que o Governo do Estado, nos últimos meses, tem adotado na regulamentação das regras de distanciamento controlado para combate a pandemia. A ausência de diálogo tem prevalecido. E com essa posição arbitrária não é possível construir consensos mínimos necessários, especialmente em momentos de crise como a que estamos vivenciando agora.

Nos últimos encontros, recorrentemente alertamos que a tomada de decisões sem respaldo técnico, apenas cedendo a pressões (muitas legítimas), acabariam por retirar a credibilidade das normas, que foram alteradas sem qualquer critério no último período.

Não podemos aceitar o falso diálogo, em que as decisões chegam prontas ou são anunciadas pela imprensa. Sempre fomos colaborativos com os demais entes federados em propostas relativas à pandemia do coronavírus, especialmente com o Governo do Estado. Queremos participar e ajudar. Construir coletivamente as melhores alternativas. Mas não podemos assumir responsabilidades que, neste momento, são do Governo do Estado.

A FAMURS considera altamente arriscada a medida de conversão para a bandeira vermelha um dia após a decisão da justiça de manter a suspensão das aulas. Não que os municípios e esta entidade não considerem que é momento para se permitir o retorno das aulas, mas essa conduta, expõe a fragilidade e desgaste do modelo de distanciamento controlado.

A FAMURS concorda, momentaneamente, com o fim do modelo de cogestão, desde que haja participação efetiva das prefeitas e prefeitos na construção de uma nova referência, que deve ser simples e objetiva, considerando as peculiaridades de cada região e setores econômicos e sociais, com foco no equilíbrio necessário. Solicitamos, enfaticamente, que o Governo do Estado inclua os municípios gaúchos no processo de decisão das regras a serem aplicadas no Rio Grande do Sul.

Ainda, solicitamos, mais uma vez, ao Governo do Estado, atitude firme e propositiva para que o processo de vacinação possa ser acelerado em nosso Estado. Precisamos de mais vacinas. Por isso, é preciso iniciativa e ação em defesa do povo gaúcho, sob pena de se manter as medidas de restrições hoje necessárias, ainda por longos meses.

Não se governa por decretos. E sim, democraticamente, construindo com diálogo, planejamento e responsabilidade, alternativas para sairmos desse impasse.

Porto Alegre, 27 de abril de 2021

Emanuel Hassen de Jesus
Presidente FAMURS

Fonte: Brasil de Fato RS

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