As eleições municipais de 2020 poderão ser um divisor de águas, o início de um processo de rearticulação das forças e partidos democráticos de centro-direita, centro, centro-esquerda e esquerda ou mais um passo na consolidação das forças e partidos de viés fascista de direita e de extrema-direita. O caminho escolhido dependerá, em grande parte, da clarividência das lideranças políticas, de sua capacidade de ler a conjuntura política e econômica, de entender os humores da opinião pública e do eleitorado, de costurar alianças e de apresentar candidaturas capazes de se sobrepor às campanhas negativas.
Para além da influência das grandes empresas de comunicação social na formação da opinião pública e na definição de votos, serão as mídias sociais alternativas, principalmente as veiculadas pelas redes sociais, em que circulam memes e fake news, as principais armas de combate para a destruição dos adversários e a conquista de votos.
O horário eleitoral de rádio e TV, determinante nas eleições anteriores a 2018, terá papel secundário, senão desprezível, ainda menos importante do que teve nas eleições presidenciais. Mais do que nunca, a desconstrução do(a) adversário(a) será o cerne das campanhas. A velha máxima de que “candidato que bate, pode destruir o adversário, mas não ganha eleição”, caiu por terra. As notícias falsas (produzidas por equipes altamente profissionais e com embasamento científico sofisticado, disparadas por centros emissores poderosos e milionários, quase sempre localizados no exterior, por meio de centenas e milhares de robôs, e disseminadas pelas tias e tios, primas e primos, irmãs e irmãos, amigas e amigos de cada eleitor, muitas vezes de modo ingênuo) serão as grandes formadoras da opinião pública e que terão peso fundamental na definição do voto da grande maioria do eleitorado. Não por acaso, pesquisa de opinião recente detectou que aqueles que se informam pelas mídias sociais têm visão mais positiva do governo atual e responsabilizam mais fortemente os governos anteriores (liderados pelo PT) pela crise.
Atravessando o período mais extenso de crise e estagnação econômica da história brasileira, em meio ao desemprego recorde, à diminuição do poder aquisitivo, ao crescimento da miséria e da concentração de renda (somos hoje o segundo país mais desigual do mundo), grande parte da população está ainda convencida de que a “culpa” de tudo “é do PT” e das esquerdas comunistas, da “velha política”, identificados com a “corrupção”, a crise econômica e o colapso “moral”. Por esse motivo, a maioria apostou na “nova política”, corporificada no bolsofascismo e nos seus partidos satélites, em que se incluem o PSL, o Aliança pelo Brasil em formação, o Novo, os velhíssimos PP, PTB, PPS e DEM ou o travestido Podemos, todos identificados agora com a “austeridade fiscal”, a pseudomoralidade (pública, social e individual) e o que alegam ser a “reconstrução do país” em curso.
Evidenciando visões estreitas, baixa capacidade de análise conjuntural ou simplesmente oportunismo extremo, amplos setores do centro e da centro-direita, de um lado, e da esquerda e da centro-esquerda, de outro, adotam avaliações e posturas semelhantes. Derrotados e até esfacelados, após as eleições de 2018, ansiosos por reconquistar seus antigos eleitores e avançar sobre os de seus adversários, setores destes campos acreditam que surgirá a oportunidade, em tempo curto, para se apropriarem do que creem será o espólio do campo adversário.
Grande parte das forças de centro e centro-direita, que foram fragorosamente derrotadas nas últimas eleições presidenciais e que se encontram hoje ligadas em graus diversos ao bolsofascismo, apostam em se apoderar do espólio do próprio bolsofascimo num futuro próximo, quando suas políticas fracassarem e o desencanto se enraizar entre os que se deixaram seduzir por suas promessas. Sonham também em abocanhar parcela do eleitorado de centro-esquerda, desencantada com os chamados “extremismos”, tanto bolsonarista quanto lulista. Apresentarão candidaturas próprias no pleito municipal, mas tenderão a se aliar com a direita e a extrema direita no segundo turno.
Reproduzindo a postura adotada por seus congêneres europeus, principalmente italianos e alemães, no início do século XX, a maioria dos partidos e forças da direita e centro-direita une-se hoje à extrema-direita, acreditando que ela fará o “trabalho sujo” de destruir as antigas estruturas do Estado, as políticas sociais e, sobretudo, aniquilar as forças de esquerda em seu amplo espectro. São eles os que mais fortemente rejeitam qualquer entendimento com a centro-esquerda e a esquerda para combater o bolsofascismo e garantir a democracia.
Derrotadas nas últimas eleições presidenciais e nas municipais de 2016, a esquerda e a centro-esquerda querem se recompor e reconquistar espaço. Buscando se reafirmar, agitam publicamente a bandeira da aliança democrática antifascista, enquanto, muitas vezes, trabalham nos bastidores pelas candidaturas próprias e pela demarcação de territórios, cada qual procurando garantir seu quinhão de poder. Propõem a articulação de uma frente “ampla” que, em muitas localidades, não vai além da junção das forças de esquerda, tradicionalmente divididas.
Se insistirem nas atuais posturas, serão todos engolidos pela extrema-direita bolsofascista: os partidos ou forças políticas de centro-direita, de centro, de centro-esquerda e de esquerda. Os de centro e centro-direita, aos poucos, até que não seja mais possível barrar a necropolítica que se enraíza no país. Os de centro-esquerda e de esquerda, já nas próximas eleições, quando serão novamente derrotados pelo fanatismo pseudomoralista, anti “comunista”, anticonhecimento e anticivilização em curso.
O quadro ideal para a vitória da extrema direita bolsofascista e de seus aliados de ocasião
Analisando a conjuntura eleitoral detectável hoje em Porto Alegre, e que pode ser tomada como exemplo do que se esboça em todo o país, constata-se uma forte tendência à fragmentação das candidaturas de todos os campos políticos, escorada na desculpa, elevada a dogma analítico, de que a proibição de coligações para a eleição de cargos proporcionais (vereadores) obriga a apresentação de candidatura majoritária (prefeito) de cada partido, que seria a “puxadora de votos dos vereadores”. Quando muito, admitem a inclusão de um ou mais partidos na coligação majoritária que, heroica e desprendidamente, ao não apresentarem candidatos majoritários, deverão correr o risco de não elegerem bancadas expressivas de vereadores
No caso de Porto Alegre, a centro-direita, direita e a extrema-direita têm como possíveis candidatos o atual prefeito Marchezan Júnior, pelo PSDB, o vice-prefeito, rompido com o titular, Gustavo Paim, pelo PP, os vereadores Valter Nagelstein e Comandante Nádia, que ameaçam deixar o MDB e se filiar, um ao PTB e a outra ao futuro partido de Bolsonaro, e o ex-prefeito de Santa Maria, Cezar Schirmer, pelo MDB. O centro tem como possibilidades as candidaturas da deputada Juliana Brizola, pelo PDT, e do vereador Airto Ferronato, pelo PSB. A esquerda e a centro-esquerda aventam a possibilidade de uma aliança que incluiria o PT, o PCdoB e o PSOL, com as candidaturas da deputada federal Manuela D’Ávila (PCdoB), para prefeita, e do deputado estadual Pedro Ruas (PSOL), para vice, ficando o PT fora da chapa majoritária, ou, ainda, com a vaga de vice ocupada pelo ex-ministro e ex-vice-governador Miguel Rossetto (PT) ou outro quadro petista. PSOL e PT disputam a vaga de vice e cada um ameaça não integrar a aliança, caso seu indicado não seja o escolhido.
A coligação que se desenha entre os partidos de esquerda e centro-esquerda, de uma amplitude inédita em Porto Alegre, reunindo o PSOL e PT, antes adversários, e o PCdoB, em flagrante contraste com a fragmentação aparente entre os partidos do campo da direita e da centro-direita, é, ainda assim, estreita e vulnerável. Não vai além da própria esquerda e apresenta nomes com enorme flanco aberto para a exploração pelas fake news, pelos memes e o bombardeio midiático e internético.
Manuela D´Avila, detentora de imensas qualidades pessoais e políticas, amplamente demonstradas em sua militância e seus mandatos como vereadora, deputada estadual e federal e como candidata a prefeita de Porto Alegre (2008 e 2012) e a vice-presidente da República, na chapa com Fernando Haddad (PT), em 2018, e mesmo que se pese a dívida que o PT possa ter com ela e com o PCdoB, foi um dos alvos mais atingidos pelas fake news e memes bombardeadas pelos robôs e voluntários informais da campanha bolsofascista. Comunista que “come criancinhas”, que distribui “mamadeira de piroca” e que propaga que “Jesus é gay”, entre outras inverdades, será alvo fácil na campanha eleitoral de 2020.
Fiar-se em pesquisas eleitorais realizadas quase um ano antes do pleito é ilusório. Elas medem apenas o conhecimento que entrevistados têm dos possíveis candidatos e a lembrança de suas candidaturas anteriores. São as campanhas eleitorais que definem os resultados das disputas e a próxima será definida essencialmente pela batalha na internet.
Parece claro que as estratégias eleitorais traçadas pelos partidos e forças políticas democráticas, sejam de centro ou de esquerda em seus amplos espectros, merecem ser revistas. Ainda há tempo para a modificação das estratégias, para o abandono das disputas gerais por pequenas hegemonias e pela demarcação de espaços e para a ampliação das alianças que possam derrotar eleitoralmente a extrema-direita e o bolsofascismo.
Caso não seja possível a inclusão do centro e da centro-direita na aliança eleitoral democrática e antifascista, uma vez que os partidos e forças políticas desse campo dão sinais de que participarão com candidatos próprios ou insistirão em se aliar à extrema direita, talvez seja o momento de a esquerda e a centro-esquerda terem a coragem de ousar. Por que não buscar nomes respeitados na sociedade e com experiência de gestão democrática, mesmo que estejam fora de seus quadros, capazes de construir novas pontes com a sociedade civil e, assim, ampliar seu potencial de votos e as chances de vitória da democracia sobre o fascismo?
Fonte: Benedito Tadeu César – Brasil de Fato