Trabalhadores passaram anos aceitando acordos que reduziram direitos para garantir a manutenção da fábrica
Em 2002, Neilor de Oliveira refletiu e concluiu que seria bom trocar de ares, saindo do ABC para Taubaté, no interior paulista, permanecendo na Ford. A mulher pediu a conta da empresa em que trabalhava, e o casal pegou a estrada com o filho pequeno. Uma mudança considerável: do município de Mauá, onde morava, para São Bernardo, onde ficava a fábrica, às vezes ele levava uma hora e meia. Em Taubaté, fazia o trajeto em cinco minutos, de carro.
Em agosto de 2020, Neilor completou 30 anos de empresa. Havia começado em São Bernardo, em 1990, depois de um movimento famoso naquela fábrica, que ficou conhecida como greve dos golas-vermelhas. Um cunhado avisou que havia vagas. Era domingo. Ele acabara de ser dispensado do serviço militar. Conseguiu emprego como montador.
“Aceite o acordo”
A vida seguiu tranquila na cidade do Vale do Paraíba a 140 quilômetros da capital. Mas de uns 10 anos para cá a situação começou a mudar, aos poucos. “A gente sabia que a Ford não estava bem. Não lançava mais produto, não investia na planta”, lembra Neilor sobre a percepção na unidade de Taubaté.
Então começaram a ser discutidos e aprovados acordos em que os trabalhadores abriam mão de salário, de participação nos lucros ou resultados (PLR), de desconto no plano médico, aceitavam planos de demissão voluntária (PDVs). Os gerentes diziam aos operários: aceite, que isso vai garantir produtos e a manutenção da fábrica.
A empresa parecia reconhecer esse esforço dos seus “colaboradores”, como costuma dizer. E enfatizava que a Ford estava preparada para os novos tempos.
“Nós atualizamos 100% do nosso parque fabril em Taubaté, com automação das linhas de usinagem e montagem, e melhoramos o fluxo de materiais, totalmente integrado ao conceito de manufatura enxuta, proporcionando eficiência nos processos e alta produtividade”, declarou em 2018 o executivo Rogelio Golfarb, que chegou a presidir a Anfavea, a associação das montadoras. “Assim, estamos alinhados ao que existe de mais avançado na Ford no mundo, com o mesmo padrão de qualidade de mercados como os Estados Unidos, Alemanha e China.”
Portfólio “empolgante”
Tudo isso levava os funcionários a confiar no futuro, pelo menos até 11 de janeiro, quando a Ford Motor Company fez um comunicado público. O texto não começou com o anúncio do fechamento: a empresa avisava que “atenderá os consumidores na América do Sul com um portfólio empolgante de veículos conectados, e cada vez mais eletrificados”. Só depois, como se fosse algo secundário, a Ford informava o encerramento das operações em Camaçari (BA) e Taubaté. A fábrica da Troller em Horizonte (CE) deve continuar operando até o último trimestre.
Entre os trabalhadores, depois de tantos acordos com redução de direitos e tantas promessas, a sensação foi de ser enganado. Além disso, em janeiro do ano passado havia sido aprovado acordo que previa estabilidade no emprego até dezembro deste ano. Para Neilor, o anúncio do fechamento foi, mais do que surpresa, um choque. Trabalhando desde os 12 anos, registrado aos 18, prestes a completar 49, ele já planejava sua aposentadoria.
“Foi uma paulada”
O choque foi duplo: o encerramento das atividades da Ford e a “reforma” da Previdência, em 2019, que soterrou seus planos. Com as novas regras e o tempo de registro, o tempo para a aposentadoria se ampliou até, pelo menos, os 60 anos, segundo projeções feitas por advogados. Neilor está, inclusive, pedindo revisão da contagem do tempo de serviço, porque trabalhou em áreas da fábrica consideradas insalubres.
“Foi uma paulada para mim. Como assim, aos 49 do segundo tempo? Acho que eu fiquei mais chateado com a reforma do que agora. É uma injustiça muito grande. Desempregado, cinquentão, vou arrumar o quê agora? Espero que ninguém passe pelo que estou passando. É muito difícil, muito triste”, diz o trabalhador.
Política industrial
Os empregados estão de licença remunerada desde o anúncio do fechamento. Na semana que passou, a Ford chegou a convocar alguns para a produção, mas o pedido não foi atendido. A Justiça do Trabalho concedeu liminares, em Taubaté e Camaçari, suspendendo demissões sem negociação coletiva e vedando práticas da Ford consideradas de assédio.
Neilor praticamente não tem expectativa de que a situação se reverta. “É uma coisa que vem da matriz. E o o nosso governo não ajuda ninguém, lavou as mãos, fica difícil.” Ele lembra, por exemplo, do programa Inovar Auto, e lamenta que o país tenha ficado sem política industrial. “As empresas que não têm sede agora (no Brasil) vão poder trazer os carros de fora e pagar o mesmo IPI. É uma coisa que o governo poderia mexer. Hoje é a Ford. Amanhã pode ser Fiat, GM, Honda.”
Corte de despesas
Neilor planeja cortar despesas como o plano de wi-fi e a TV a cabo. As compras já haviam diminuído: “Está muito caro”. Assim, o plano é manter o filho – que conseguiu emprego cinco meses atrás – na faculdade de engenharia mecânica. A casa, pelo menos, foi quitada com o FGTS. Resultado de esforço acumulado em anos. “Muito trabalho, muita hora extra…”
“Desaba mesmo, desaba o mundo”, diz Neilor. Ultimamente, ele teve poucas alegrias: o fracasso do rival Palmeiras no Mundial de Clubes (é corintiano) e principalmente com o fato de o pai, de 91 anos, ter tomado a vacina contra a covid-19. A mãe, de 82 anos, receberá a primeira dose nos próximos dias. O trabalhador conta que seus pais, bastante preocupados, perguntam todos os dias o que vai acontecer. Agora, a expectativa é de que saia um acordo que preveja, no mínimo, uma indenização justa. Bem antes de seu aniversário, em 12 de maio. “Espero estar feliz nesse dia.”
Desde que a Ford comunicou o fechamento, os metalúrgicos de Taubaté se organizaram em vigília, diante da fábrica. São quatro turnos: das 6h às 12h, das 12h às 18h, das 18h até meia-noite e , por sim, novamente até as 6h. Dentro, apenas serviços essenciais e de terceirizados. Até aqui, o movimento tem se mantido em tranquilidade, mas com cansaço e angústia pela indefinição.
“Para a gente tem sido muito cansativo, mas tem que ser feito”, diz Vagner Rodrigues Monte Mar. “Acho que a conquista vem de muito suor, mas ninguém quer desistir.”
Indefinição causa angústia
No mercado desde os 13, perto dos 37 anos, que completará em maio, casado, Vagner entrou em 2002 na Ford, inicialmente como funcionário de empresa terceirizada e depois como empregado direto da montadora. Seu pai passou 30 anos na fábrica, o que sempre foi motivo de orgulho na família. Talvez por isso, o choque tenha sido maior. “Nas primeiras semanas chorei demais. Agora estou mais tranquilo”, conta.
Assim como Neilor, ele lembra do esforço que foi feito nos últimos anos, com a aceitação de acordos que reduziram direitos. A gente tem aberto mão de muita coisa, em troca da manutenção dos empregos, dos investimentos.” Trabalhando na área de qualidade, ele contava novos projetos e protótipos. Conta que alguns colegas ainda alimentam esperança de que a fábrica se mantenha.
Começar do zero
Mas hoje a indefinição impede que as pessoas decidam novos rumos, se for o caso. Ele mesmo abriu mão de um emprego, em outra área, enquanto a situação na Ford não se resolver. Ainda que tenha “começar do zero”, como diz. Por enquanto, Vagner reduz despesas: comprou um carro mais barato, cortou o cartão de crédito. “O que está ao nosso alcance estou cortando. Tenho amigos lá que já tiraram os filhos da escola (particular)”.
“Não esperávamos uma decisão tão cruel como foi essa”, afirma Sidivaldo Borges, do comitê sindical. “Desde 2013, o sindicato e os trabalhadores têm feito acordos com o discurso de que a fábrica precisava ser competitiva”, lembra, acrescentando que o acordo de janeiro de 2020 veio acompanhado da promessa de dois motores novos – a unidade de Taubaté produz motores (capacidade instalada de 500 mil/ano) e transmissões (440 mil). Ele fala em deslealdade. “Os trabalhadores se sentiram traídos, abandonados”, afirma o representante.
Às 15h de 11 de janeiro, pouco antes de tornar pública a informação sobre o fim das operações no Brasil, a Ford avisou o sindicato, por videoconferência, que havia uma decisão global. Mas, em contato com o UAW (sindicato dos trabalhadores no setor automobilístico dos Estados Unidos) e com o IndustriALL Global Union (sindicato global da indústria), os metalúrgicos foram informados que a empresa, por força de acordo, deveria apresentar os motivos da medida.
“Fizemos a nossa parte”
“A nosso ver, a Ford aproveitou a questão da pandemia”, avalia Sidivaldo, que entrou na empresa em 1995 e ganhou o apelido de Escort, modelo de automóvel famoso na época. Em Taubaté desde 2002, ele passou antes pelas unidades do Ipiranga, na capital paulista, e de São Bernardo.
Ele define como “complexa” a condição psicóloga dos trabalhadores neste momento. Segundo Sidivaldo, vários funcionários têm mais de 20 anos de Ford e apresentam alguma lesão adquirida no serviço. “Agora se veem abandonados pela Ford, e terão dificuldades para retornar ao mercado de trabalho. (…) Em meio à pandemia, a gente sabe da segunda onda, a Ford simplesmente fala que não vai ter mais plano médico.”
O integrante do comitê sindical ressalta a questão dos acordos que foram aprovados nos últimos anos, à custa de redução ou congelamento de salário e diminuição de direitos. “O que a sociedade precisa saber é que o sindicato e os trabalhadores fizeram sua parte. Reduziram os custos da empresa para que a fábrica continuasse produzindo.” Hoje com 830 empregados diretos, a unidade chegou a ter 2.300, aproximadamente.
A mobilização, que incluiu uma carreata na última sexta-feira (12), é no sentido de discutir um acordo que reduza o impacto da medida. Por isso, recentemente os trabalhadores rejeitaram uma proposta feita pela empresa. “Era como se ela estivesse antecipando o pagamento (pelo acordo de estabilidade, que vai até dezembro). Não é indenização”, explica Sidivaldo.
“Festa”
Em abril de 2018 – um ano antes do centenário da empresa no Brasil e do fechamento da fábrica de São Bernardo – a Ford fez festa para celebrar os 50 anos da unidade de Taubaté, com governador e prefeito presentes. Destacou a chegada de um motor e uma transmissão manual. “Fizemos significativos investimentos em equipamentos, sistemas e melhoria de processos que estão totalmente alinhados com os conceitos da indústria 4.0”, disse na ocasião o presidente da Ford América do Sul, Lyle Watters.
Sem contar, emendou o executivo, no investimento nas pessoas, “nosso recurso mais valioso”.