Caso Ford, suas lições e o que é preciso fazer

A decisão da Ford de encerrar as atividades produtivas em todas as suas fábricas que operam no Brasil, anunciada em 11 de janeiro de 2021, e ainda a sua intenção de continuar no mercado de veículos brasileiro, nos obriga a uma profunda reflexão.

Quando a montadora fez o anúncio oficial daquilo que chama de reestruturação da América do Sul, automaticamente nos remeteu à iniciativa que tomou há quase dois anos, convocando todos os representantes dos trabalhadores em São Bernardo do Campo, para comunicar o encerramento das operações na planta do ABC Paulista.

Naquela ocasião, a produção de caminhões era relevante no mercado nacional e gerava lucros para a empresa. Por isso, a sua ação foi tão surpreendente, mas já era um ensaio do que estava por vir.

Desta vez, minha surpresa foi menor já que desde 2017 a Ford não divulgava nenhum novo investimento ou projetos para suas plantas, os carros produzidos no Polo de Camaçari necessitariam de forte atualização tecnológica para novas versões, mas nada sinalizava para isso, o que acendeu a luz amarela sobre o destino da empresa no país.

Além de finalizar a produção do New Fiesta e do caminhão Cargo e da Série F, em São Bernardo do Campo (2019); finda a fabricação do Ka e do Ecosport, em Camaçari, na Bahia; de motores e transmissão, em Taubaté e da Troller, em Horizonte, no Ceará; provocando a perda de mais de 100 mil postos de trabalho em toda a cadeia.

Erros

É importante destacar que, nos últimos 15 anos, a Ford não trouxe ao Brasil um investimento que pudesse ser considerado como estruturante, levando em conta o carro, com premissa de ser global e a tecnologia embarcada, que desenvolvesse fornecedores no país e que, efetivamente, tornasse o veículo apto a uma plataforma exportadora mundial.

A utilização da tecnologia mais avançada, produzida pela montadora, não aconteceu em nenhum de seus veículos produzidos nacionalmente. Nem próximo do que ela já havia efetuado, nos anos 1980, com a fabricação do Escort.

Esses erros, tanto na produção de caminhões como na de carros, que mesmo com atualizações, nunca fizeram parte da estratégia global da empresa, foram acumulados pela Ford Brasil durante várias administrações, de Jin Padilla a Lyle Watters.

Isso simboliza o maior erro de condução estratégica da Ford no Brasil, que culminou com o encerramento da sua história no nosso país.

O impacto social disso impõe a necessidade de diálogo e de o Brasil resistir: governos, trabalhadores, sociedade, enfim todos que têm interesse em que o país continue se desenvolvendo, gerando emprego e oportunidades para o seu povo.

Não se pode aceitar o fechamento de uma empresa como a Ford, com 102 anos no Brasil, que decide abandonar a produção, mas não o mercado brasileiro, passando à explorá-lo a partir de outras plantas na Ásia e no México, com o Acordo de Livre Comércio entre os países.

Ford ABC

Aprendemos com o que aconteceu em 2019, em São Bernardo do Campo, para o bem ou para o mal. Naquele momento, especialmente o governo federal negou qualquer participação na luta e resistência que o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, junto aos trabalhadores e trabalhadoras, promoveu. Ao contrário, virou as costas aos demitidos e só faltou apoiar a decisão, com seu discurso ultraliberal de que a empresa pode fazer o que quiser do seu negócio. Um verdadeiro absurdo, ainda mais com todos os recursos de Estado oferecidos às montadoras.

O governador do estado de São Paulo, João Doria, na época acabou condicionando-se e aderiu a ideia de vender a planta para uma outra montadora, o que não deu certo. Não se materializou, com a desistência da Caoa ainda naquele ano. Essa história se repete agora, porque querem colocar novamente essa “cerejinha” da Caoa para o governador da Bahia, Rui Costa, e temos de alertá-lo: Cuidado!

A primeira coisa que temos que fazer é organizar a resistência, organizar a luta, já que podemos ter mais de 100 mil pessoas impactadas pela decisão da montadora estadunidense, entre trabalhadores diretos e indiretos e os que estão ao redor de toda a operação produtiva da Ford, pelo tamanho e alcance que a empresa tem.

É uma decisão perigosa e pode ser seguida por outras empresas multinacionais se o Brasil não se mostrar altivo, defendendo o país, defendendo seu legado.

Há a necessidade de muita unidade entre os sindicatos de Taubaté e de Camaçari, para encontrar uma outra alternativa. É possível.

Não basta a Ford alegar que é uma reestruturação global da marca. Isso não nos tira a condição de achar alternativas, seria aceitar de maneira muito fácil.

Incentivos públicos

Resistir a essa decisão é muito importante porque é didático para as outras empresas, para os trabalhadores e para o Brasil exercer sua soberania, já que a decisão da empresa ameaça a  soberania nacional, pois, por mais de um século em que esteve instalada no país, a Ford foi apoiada por municípios, estados e União diversas vezes.

Lembremos dos incentivos mais recentes, dos R$ 5,5 bilhões do BNDES, desde 2011, e dos quase R$ 7 bilhões em impostos não pagos por conta do Regime Automotivo do Nordeste, mas a história da Ford está umbilicalmente ligada a recursos de Estado.

Na Ford Ipiranga, por exemplo, todo o entorno era destinado à empresa para chegada de caminhões, na implementação do modelo de just-in-time, que substituiu o estoque de peças. Além disso, todos os municípios investiram na mobilidade, no viário para viabilizar os novos modelos de logística das empresas.

Portanto, é impossível a Ford tomar essa decisão e não ter um envolvimento determinante por parte dos agentes de Estado.

O Brasil, por conta do Inovar-Auto, regime automotivo estabelecido em 2012, recebeu muitos investimentos, com as montadoras que vieram para o país com objetivo de participar do mercado doméstico. Tínhamos uma previsão de chegar a 5 milhões de veículos por ano, que era perfeitamente possível naquela época.

Apesar da crise mundial de 2008, que o Brasil já tinha superado e mesmo com as dificuldades econômicas de 2013, o regime trouxe mais capacidade para o setor.

A bem da verdade, o mercado não atingiu o número de veículos previstos e, até por isso, será necessário tornarmos um polo exportador se quisermos manter as unidades produtivas.

Transição de mercado

Os mercados mais maduros como dos Estados Unidos, da Europa e do Brasil – que também é um mercado já maduro nesse sentido – têm condições de crescer ano a ano, mas não é um crescimento como o da China ou da Índia.

O mercado mundial de veículos continua crescendo, em 2019 bateu recorde de produção de veículos no mundo, com os mercados emergentes puxando essa produção.

Esses mercados passam por um processo de mudança muito forte: a eletrificação dos carros, nova visão do consumidor em relação a posse de um carro, conectividade dos veículos, entre outros.

Esse momento é de transição e ainda teremos muitos carros  movidos a gasolina e a álcool, os chamados flex. O Brasil lidera nesse tipo de produção, até porque se analisarmos tecnicamente, em determinados países o carro movido a etanol é menos poluente que um carro elétrico, dependendo da matriz energética daquele país.

A China, por exemplo, tem uma matriz energética baseada no carvão, nesse caso o carro a etanol emite muito menos poluentes do que o carro elétrico, se fizermos a conta desde a geração de energia até o carro rodar na rua, mas o país optou pelos carros elétricos e está antecipando esses investimentos e as montadoras estão comprometidas em oferecer um produto com uma outra matriz energética e o Brasil tem que fazer um grande diagnóstico nesse sentido.

Temos de trazer essa produção para o país, mesmo que o mercado doméstico não a absorva de imediato, mas nos tornará capazes de exportar e valer a pena os investimentos feitos aqui entre 2012 e 2015.

Algumas marcas estão abandonando o Brasil, as chamadas marcas premium, a Mercedes fechou a planta de Iracemápolis, a Audi vem anunciando que também fará o mesmo, a BMW ainda em suspenso sobre o que vai acontecer com a sua planta, a Ford com a sua decisão de: “não quero mais produzir no Brasil e vou explorar o mercado a partir de fora”. Se não fizermos uma discussão profunda sobre o setor automotivo e entender que o Brasil precisa se tornar uma base de exportação, viveremos mais problemas.

O Rota 2030 não entrou nesse debate, os sindicatos insistiram muito para entrar no Grupo de Trabalho (GT) de Eletromobilidade, que está, praticamente parado, ainda mais com o governo Bolsonaro. Não há estratégia para o setor.

Se deixar sem um arranjo nacional, o debate das marcas apenas envolvendo suas matrizes, somente o mercado doméstico não dará conta de todas as unidades que a capacidade instalada de suas fábricas podem produzir no Brasil.

Pandemia e descaso

Iniciando um ano de pandemia, em que mal temos vacinação, com auxílio emergencial incerto, provavelmente veremos mais empresas fazer o mesmo que Ford. Tomar essa decisão com todas essas coisas pairando no ar, não é nem um pouco razoável, não dá para aceitar.

O governo de São Paulo anunciou que teria um plano industrial paulista. Cadê? Não veio. Só reagem diante da desgraça e reagem por questões políticas, como foi o caso do governador João Doria. O essencial, de montar uma mesa de negociação, juntando trabalhadores, empresários, quadros técnicos do governo, não aconteceu.

O governo de Jair Bolsonaro é uma tragédia, não tem nenhuma estratégia. O ministro da Economia Paulo Guedes chegou a falar que iria “fazer uma política para a indústria apesar dos industriais”, mas o que ele fala não se escreve.

Se fosse verdade, seria importante, mas não é verdade. Foi uma fala motivada por um elemento de conjuntura, que não condiz com a realidade, como as várias afirmações feitas pelo ministro. Não é um governo sério e não seria no caso da Ford.

A prova mais categórica dessa falta de responsabilidade foi demonstrada com a decisão do Supremo Tribunal Federal, o STF, de tirar a condução da pandemia de Covid-19 do governo federal e passar aos estados e municípios.

A preocupação do governo e do ministro não são os trabalhadores, não é a renda dos trabalhadores. O fechamento da Ford vai reduzir a massa salarial em dezenas de bilhões de reais por ano.

Além disso, os leilões de infraestrutura estão fracos, devido à desconfiança externa, não há investimentos nesse segmento e os índices econômicos, que já não eram bons, estão ainda piores com os efeitos da crise mundial do coronavírus.

FMI x messianismo de Guedes

Até o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial estão dizendo para que gastem-se recursos, que façam políticas expansionistas nesse momento, olhem para o seu país e invistam, para que os países lá na frente possam sair da pandemia mais fortes, saindo do messianismo econômico que Paulo Guedes e os liberais brasileiros ainda defendem.

Um dos problemas do Brasil, que atribuem ao nosso custo, é a nossa precária malha viária, ferroviária e de portos. Temos um problema de infraestrutura seríssimo no Brasil, por isso deveríamos aproveitar esse momento, quando há oportunidade para o debate econômico externo, para adotar um ciclo de investimentos de Estado, baseado na indústria nacional.

Em 2011, recebemos mais de US$ 100 bilhões de investimentos estrangeiros diretos. No ano passado, foi um pouco mais de US$ 30 bilhões e, ainda assim, se referem ao de curtíssimo prazo, aproveitando os juros elevados no país, que ainda são superiores aos praticados no mundo, ou seja, vêm, trazem um pouco de dólar e quando saem levam um caminhão de dinheiro, mais um resultado negativo que estamos tendo por conta da péssima relação internacional do governo atual do Brasil.

O Congresso Nacional também vem adotando uma agenda independente na condução da pandemia e pode incluir no debate legislativo a nacionalização dos bens da Ford, que é uma ação possível.

Para que, onde a empresa está dizendo que irá encerrar as atividades, esses bens sejam nacionalizados. O que não é o mesmo que estatização. Com isso, se dará uma destinação ao patrimônio. Se houver realmente alguma empresa chinesa interessada não será a Ford quem irá negociar, será o Estado.

Ford Aquitaine Industrie (FAI)

Em Blanquefort, na França, a Ford teve que indenizar todos os trabalhadores e negociar com a região onde estava instalada, devolver todo o incentivo fiscal que recebeu, porque obteve inúmeros benefícios e, ainda, teve a obrigação de negociar com o Estado o futuro do parque industrial.

O acordo de revitalização e reindustrialização do território da comunidade francesa prevê investimentos de 18 milhões de euros pela montadora, com 4 milhões para a reindustrialização e o restante para apoio ao desenvolvimento econômico local e geração de 1.500 empregos até 2024 ou 76% a mais que os postos de trabalho perdidos com o fechamento da Ford Aquitaine Industrie (FAI).

Esse é um dos caminhos, especialmente para a Ford em Camaçari, já que todo o parque fabril teve muito benefício de estado, município e governo federal.

O caso francês pode ser adotado em Camaçari e o tema da nacionalização ganhar força. Para isso, o Congresso Nacional tem um papel fundamental nesse debate, com os governadores, tanto o João Doria, em São Paulo, como o Rui Costa, na Bahia e o Camilo Santana, no Ceará, para adotar medidas legislativas para o parque, tirando o poder da Ford de definir a sua destinação.

A discussão tem que ser democrática e incluir os trabalhadores e seus representantes na decisão do futuro da área. Se de fato existe uma empresa chinesa interessada no polo de Camaçari, que o estado da Bahia, os deputados e senadores baianos e o sindicato representando os trabalhadores façam parte desse processo de negociação e não a Ford, mas os interessados diretos: estado, município e trabalhadores. Isso é educativo.

O caso Ford pode nos trazer uma oportunidade de debater profundamente a desindustrialização no Brasil, trazer a questão para dentro do Congresso, com senadores e deputados para debater esse tema.

O exemplo Cingapura

Cingapura, por exemplo, entrou na 3ª revolução industrial, nos anos 1990, criou uma estatal para desenvolver o setor eletrônico no país, com foco regional. E agora, está tendo a mesma iniciativa com a 4ª revolução industrial e o Brasil deve seguir esse caminho, desenvolvendo o macrossetor digital.

Para isso, poderia-se criar uma empresa estatal para desenvolver de forma mais robusta o que já se produz no país, mas ainda é incipiente. São novos setores que temos que agregar, como as novas tendências do setor automotivo, como conectividade.

Os novos empregos da indústria 4.0, da Inteligência Artificial existirão e estudos do Senai mostram que é possível compensar com empregos tecnológicos o que eventualmente se perdeu com a automação, mas para isso a indústria tem de estar no Brasil.

O Instituto Trabalho, Indústria e Desenvolvimento, o TID-Brasil, as confederações de trabalhadores na indústria, metalúrgicos, químicos, energéticos, da construção civil e madeira, da alimentação e do vestuário, filiados à Central Única dos Trabalhadores (CUT) e também de outras centrais, já vêm discutindo o tema e elaboraram, junto com assessores técnicos e professores universitários convidados, o Plano Indústria 10+ Desenvolvimento produtivo e tecnológico, que consiste em propostas para alavancar o setor industrial brasileiro.

Mesa Nacional da Indústria

Agora estamos propondo a criação de uma Mesa Nacional da Indústria, para debater o setor nacionalmente, com a participação da Confederação Nacional da Indústria (CNI), com as federações patronais, com a IndustriALL-Brasil, com as confederações da CUT e outras centrais e sindicatos importantes, como os metalúrgicos de Sorocaba, Taubaté, ABC, Belo Horizonte, Porto Alegre, Manaus e outros, além de representantes dos parlamentos, pesquisadores e professores universitários.

Um debate amplo para garantir que a indústria não saia do país e se desenvolva de forma sustentável, tenha responsabilidade social, preserve o meio ambiente e o ser humano com vida digna nesse ambiente.

Queremos elaborar uma campanha nacional para que toda a sociedade se aproprie do tema: Sem indústria, o Brasil para.

Então, o que falta aos governantes é estratégia e gostar do Brasil e, infelizmente, a maioria não gosta do nosso país e nem tão pouco dos trabalhadores.

Rafael Marques é presidente do Instituto Trabalho, Indústria e Desenvolvimento, o TID-Brasil e presidiu o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, de 2012 a 2017, e a Agência de Desenvolvimento Econômico do Grande ABC, em 2013 e 2014. Ingressou na Ford, em São Bernardo do Campo, em 1986 e representou os trabalhadores e trabalhadoras na montadora do ABC Paulista por quase três décadas.

Fonte: Artigo de Rafael Marques via Revista Teoria e Debate

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