“É significativo que o Estado incorpore o vocabulário de luta feminista”, diz socióloga e integrante do Ni Una Menos
O trabalho profundo e pedagógico dos feminismos ao longo da história mostrou – e mostra – a divisão sexual do trabalho e como o trabalho doméstico, socialmente atribuído às mulheres, é uma das bases do capitalismo. Permite que os homens trabalhem fora de casa, e as mulheres exerçam atividades domésticas e familiares em tempo integral, sem qualquer reconhecimento simbólico ou material. O lema feminista na Argentina a respeito disso costuma dizer: não é amor, é trabalho não pago.
A ativista e escritora italiana Silvia Federici é uma das feministas que costuma reforçar essa pauta. “Fala-se agora em serviços essenciais e nunca se menciona que o trabalho doméstico é o serviço mais essencial que há, porque cada dia reproduz a vida”, ressaltou, em uma palestra sobre capitalismo, reprodução e quarentena, em Nova York, no ano passado.
Lei argentina
Dessa forma, o decreto 475/2021 foi recebido com êxito pelos movimentos feministas. O governo argentino determinou a equivalência de um ano de serviço previdenciário por cada filho; dois anos no caso de filhos adotivos ou com deficiência; e três para mulheres registradas no Benefício Universal por Filho (AUH), programa de transferência de renda para mulheres em situação de vulnerabilidade econômica.
A iniciativa é parte do Programa Integral de Reconhecimento de Períodos de Contribuição por Tarefas de Cuidado, da Administração Nacional da Seguridade Social (Anses).
Reproduzir a vida implica muitos elementos. Não é apenas limpar, cozinhar, levar as crianças ao parque; é todo um trabalho emocional.
Silvia Federici
Um reconhecimento histórico
Conforme detalha o texto do decreto 475/2021, 95% das pessoas registradas no AUH são mulheres, “atravessadas pela acumulação de desvantagens em virtude de sua condição de gênero e que também acumulam desvantagens associadas à sua situação socioeconômica”.
Destaca, além disso, que as mulheres representam apenas 39,4% da taxa de emprego no país em relação aos homens, segundo a última Pesquisa Domiciliar Permanente de 2020. O levantamento cita ainda a “feminização da pobreza” e reconhece o trabalho produtivo e reprodutivo como “um conjunto de ações necessárias para o desenvolvimento da vida cotidiana e o sustento das sociedades”.
“As dificuldades enfrentadas pelas mulheres para entrar no mercado de trabalho registrado têm relação direta com a divisão sexual do trabalho, que atribui papéis de gênero às diferentes atividades e que, historicamente, delegou às mulheres o trabalho reprodutivo e as tarefas indispensáveis para garantir o cuidado, bem-estar e sobrevivência das pessoas do lar, enquanto o trabalho produtivo, que se realiza de maneira remunerada no mercado, aparece associado aos homens”, diz o texto.
“É muito significativo que o Estado, em tão pouco tempo, incorpore nosso vocabulário de luta”, opina a socióloga Lucía Cavallero, ativista do coletivo feminista Ni Una Menos. “É uma conquista muito importante que o Estado comece a falar em uma linguagem e um vocabulário que se alcunhou primeiro nas ruas, nas instâncias de organização”, acrescentou.
A tradução da militância feminista em políticas públicas permitirá, neste caso, que cerca de 150 mil mulheres possam se aposentar. Como afirma Cavallero, trata-se de uma política reparatória e simbólica.
“A situação é ainda pior no caso de lésbicas, travestis e trans, que, estas últimas, têm expectativa de vida de 45 anos. Acessar a uma aposentadoria seria, primeiro, poder viver”, pontua a socióloga.
A deputada nacional María Rosa Martínez (Frente de Todos) também fez referência à necessidade de mais políticas previdenciárias para populações historicamente negligenciadas. “Devemos legislar em torno da seguridade previdenciária para que a comunidade travesti e trans tenha a possibilidade de acessar à aposentadoria a partir dos 40 anos. Estamos trabalhando neste sentido”, pontuou a legisladora, em entrevista à Rádio Gráfica.
Trabalhos reconhecidos
Mãe de três filhos, Marcela Ruso tem 60 anos e mora na cidade de Buenos Aires. Por apenas um ano de contribuição faltante não pôde iniciar o processo para obter sua aposentadoria. Trabalhou toda sua vida, desde a conclusão do ensino médio.
“Quando ainda eram pequenos, me dediquei aos meus filhos, e quando a mais nova completou 17 anos, voltei a trabalhar”, conta Marcela – que, na verdade, nunca deixou de trabalhar, entre a criação dos filhos e os cuidados domésticos. Com o acompanhamento de um advogado, agora espera ter reconhecidos os três anos que lhe correspondem por cada filho e, assim, obter sua aposentadoria.
“Não apenas trabalhamos em empresas, mas nos dedicamos aos nossos filhos, e é um reconhecimento ao trabalho realizado. É uma medida excelente”, opina.
Gladys Barrionuevo também já tem idade para aposentar-se. Com 61 anos, moradora da cidade de Mercedes, na província de Buenos Aires, espera poder contabilizar os dois anos correspondentes por seus dois filhos para entrar em moratória. Em uma situação mais delicada, contava com menos de 10 anos de contribuição, já que dedicou-se a maior parte do tempo a atividades informais, entre jornalismo e terapia alternativa.
“Você se dá conta quando chega a hora de se aposentar”, comenta. “Tenho muita expectativa, algo que já começou há dois anos atrás, quando voltaram a implementar a moratória para a aposentadoria de donas de casas e pessoas que, como eu, não contavam com as contribuições necessárias”, comenta, sobre a política de moratória impulsionada pelos governos de Néstor Kirchner e Cristina Kirchner, desmantelados durante o governo de Mauricio Macri (2016-2019). O presidente Alberto Fernández retomou a facilitação das moratórias para a aposentadoria.
O reconhecimento social ao trabalho familiar e doméstico é comemorado por Gladys que, por outro lado, ressalta que os anos reconhecidos são simbólicos. “O trabalho não é de apenas um ano; há muito a ser considerado na criação de um filho. Até porque o cuidado dos mais velhos também é feito pelas mulheres, em geral. Inclusive as próprias cuidadoras, que trabalham no cuidado de idosos, também são mulheres”, destaca.
Há um preconceito ao pensar que a mulher que fica em casa para cuidar dos filhos não trabalha. É um trabalho, de outro lugar.
Gladys Barrionuevo
Portanto, em termos de política pública, a medida pode ser um primeiro passo. “A Argentina está debatendo sobre leis de cuidados e políticas de gênero”, observa Cavallero, que destaca dois fatores que considera importantes na discussão.
“Por um lado, deve haver mais serviços públicos, de melhor capacidade, que permitam diminuir a carga das tarefas não remuneradas. O ideal não é que o Estado pague para que as mulheres façam essa tarefa, mas socializar essas tarefas para que não sejam sempre elas quem as façam. Outro ponto é que esse reconhecimento monetário deve ser suficiente para gerar autonomia econômica. Se a renda é muito baixa, de alguma maneira continuamos reproduzindo a mesma situação de desigualdade em relação às mulheres.”
Fonte: Brasil de Fato