Aos 16 anos, estudante lamenta situação do país: “Jovens deixando de sonhar para ajudar em casa”
No país com fama de ser o do futebol, o estudante Nicolas Gabriel Xavier Machado, de 16 anos, conta que vai abrir mão de seu sonho de trilhar carreira no esporte porque precisa conseguir um trabalho imediato para ajudar a família a sobreviver à crise brasileira. Essa tem sido, aliás, a única reputação do Brasil que o jovem conhece e observa ao analisar a fila do Feirão de Empregos do setor hoteleiro, no bairro da Liberdade, centro de São Paulo, que se forma atrás dele, na manhã fria da última quarta-feira (13). A difícil busca por um emprego, para alguns o primeiro, para outros uma forma de conseguir chegar ao cada vez mais distante direito à aposentadoria.
Ao lado da irmã, Laura Katiuce Xavier Machado, 21 anos, ele é o terceiro em busca de uma oportunidade no mutirão que em três horas já tinha distribuído 1.200 senhas. A ação terminou nesta quinta (14) com a participação estimada de 3 mil pessoas. Para participar da feira, organizada pelo Sindicato dos Trabalhadores em Hotéis, Bares e Restaurantes de São Paulo (Sinthoresp), Nicolas chegou ao local por volta das 23h do dia anterior, depois de quase duas horas de deslocamento desde Cidade Tiradentes, onde mora, bairro no extremo leste da capital paulista.
Com um cobertor, levado pela irmã, eles enfrentaram a madrugada de baixa temperatura e garoa ao lado de outras 10 pessoas. O objetivo: conseguir um dos 789 postos de trabalho formal anunciados pelo feirão que pode lhe render seu primeiro emprego com carteira registrada. Mas não o primeiro trabalho de sua vida.
Sonho ficou de lado
No currículo do estudante do segundo ano do ensino médio público já há experiências de ajudante de eventos em bufê, ajudante de pedreiro, de limpeza e de feirante. Todos “bicos”, que faz para complementar a renda familiar. Nicolas conta que a renda mensal da mãe, que também se desdobra em trabalhos extras aos finais de semana, não tem sido suficiente para as despesas da família.
Por isso a busca por emprego, para ajudar em casa e, espera, guardar uma reserva para seus planos de cursar uma faculdade, Contabilidade ou Engenharia Civil, o segundo sonho que luta para não ter de abandonar. É um momento de “muita dificuldade”, descreve ele. O que força “muitos jovens a desistir dos próprios sonhos”. “Tipo assim, (você) tem um sonho e não pode realizar por ter que trabalhar cedo”, lamenta.
“Eu ainda jogo no Corinthians, no time B da base, mas só de sábado. Só que para ser profissional exigiria bem mais dedicação, treino na semana e foco direto. E eu tenho que escolher entre um dos dois: ou trabalha, ou futebol. E infelizmente tenho que escolher o trabalho. Nem todos precisam mas, querendo ou não, vendo a situação que está em casa, mesmo sua mãe e seu pai falando que não precisa, você sabe a realidade, vê todos os dias. Então acaba tendo que deixar o sonho de lado para ajudar dentro de casa, colocar alguma coisa”, completa Nicolas, que atribui a responsabilidade sobre a crise ao governo de Jair Bolsonaro.
Gerações em busca por desemprego
Entre as vagas para jovem aprendiz, ajudantes de limpeza, camareiras, garçons e recepcionistas para quem não tem experiência ou grau mínimo de escolaridade, ou para cargos em áreas administrativas e de manutenção, para aqueles com experiência, Nicolas repete a frase mais recorrente que se ouvia ao longo de toda a fila na busca por emprego, que partia da porta do sindicato e dobrava a esquina da Rua Taguá, ocupando até a metade da Rua Vergueiro, na altura do metrô São Joaquim. “Independente (sic) do que aparecer, eu vou”, garante.
Em um cenário de alta inflação associado à redução do poder de compra e ao desemprego – o país tem hoje 10,6 milhões de desempregados e quase 40 milhões na informalidade, segundo o IBGE – a busca por emprego formal tem, além de rostos e histórias diferentes, gerações de trabalhadores que se encontram na mesma fila. Onde falta o básico como comida e trabalho, era a expectativa de conseguir um emprego que os uniam em um mesmo drama.
Valdeci Lopes Cerqueira também teve de começar a trabalhar cedo, aos 12 anos, por conta da situação do país. Isso há 45 anos, quando militares, empresários e a classe média alta ainda comemoravam o chamado “milagre econômico” – período entre 1968 e 1973 –, mas ignoravam o aumento da desigualdade social. Em 1977, quando ela deixou Salvador atrás de trabalho em São Paulo, o índice de Gini – que mede a concentração de renda – era de 0,63. Um salto na desigualdade na comparação com o ano de 1960, antes da ditadura civil-militar, que atingia 0,54. Pelo coeficiente, que vai de 0 a 1, quanto mais perto de 1, mais desigual é o país.
‘Emprego não está vindo‘
Nessa terra de abismos, Valdeci, hoje com 57 anos, então criança, foi cuidar de outra, recém-nascida de 3 dias de idade. Ela seguiu como babá até os 7 anos da criança, quando a família que a explorava decidiu ir embora “para o estrangeiro”. “Minha patroa queria me levar, mas minha mãe, que estava em Salvador, não autorizou”, recorda. Desde então, a trabalhadora trabalhou em outras “casas de família”, e foi faxineira, diarista, cuidadora de idosos e copeira.
“Mas registro mesmo foi só esse de copeira”, observa ela sobre o vínculo empregatício formal, no início dos anos 2000, que lhe possibilitou mais tarde, quando sofreu um acidente no pé, que fosse afastada do trabalho pelo INSS e ficasse “na caixa”. Valdeci chegou a se aposentar até que uma nova perícia alegou erro médico e suspendeu seu direito. “O INSS falou para mim que tenho que trabalhar mais nove anos”, detalha. Porém, há quatro anos, a trabalhadora tenta voltar a ter carteira assinada para se aposentar, mas não consegue.
“Sou uma boa babá, uma boa cuidadora de idosos, tenho prática. Mas só que o emprego não está vindo”, se queixa, ao pegar a senha de número 134, depois de quase três horas na fila, na esperança de conseguir “qualquer coisa, não estou escolhendo”.
Valdeci tem pressa porque, sem a renda da previdência, ela vem passando por dificuldades financeiras. A trabalhadora ainda não viu faltar comida à mesa, como tantas famílias nesta crise brasileira mas sobrevive com recursos da irmã, aposentada de 75 anos que recorre a empréstimos bancários para ajudar nas despesas, e da filha, de 27 anos, formada em radiologia, mas que não consegue exercer a profissão por falta de experiência e por isso atua em administração.
Sonho na adversidade
“Eu fico triste porque sempre gostei de trabalhar. Sempre fui uma pessoa ‘trabalhadeira’. Gosto de ter meu dinheiro e minhas coisas. Não gosto que ninguém me dê nada, eu prefiro dar do que receber. E minha filha e irmã que estão me ajudando. Minha filha é casada e deixa de fazer as coisas dela, de terminar de construir o sobrado que tem atrás da minha casa, para poder me ajudar. E minha irmã deixou de pagar um curso para o neto, em Salvador, que tem 21 anos, para me ajudar. Isso não está certo, ele também está desempregado”, diz Valdeci.
Filha e irmã unem esforços e trocados para pagar um curso técnico de enfermagem para ela. A expectativa é que, com a formação, fique menos difícil arrumar um emprego. O plano empolga Valdeci, mas a trabalhadora espera que a renda do emprego que busca na fila da rede hoteleira de São Paulo lhe garanta as mensalidades do estudo.
Assim como o jovem Nicolas, Valdeci também tem sonhos. “Fazendo o curso de enfermagem técnica, depois eu pretendo fazer minha faculdade. Se Deus quiser, de enfermeira padrão. Gosto muito da área de saúde. Uma vez cuidei de uma vizinha, lá onde moro, em Guarulhos, que ficou doente. Fiquei com ela no hospital por quatro meses, até banho eu dava no leito. E as enfermeiras diziam que me desenvolvi bem lá”, descreve com orgulho.
Fila escancara drama do país
Além de trabalhadores mais velhos em busca da carteira assinada, a gerente de recursos humanos Ingrid Toyota, do Tivoli Mofarrej São Paulo – uma das 17 grandes hoteleiras envolvidas no feirão de empregos – compartilhou à reportagem ter recebido currículos também de pessoas com mais de 60 anos. A executiva vê com bons olhos a diversidade de profissionais porque, segundo avalia, é preciso “ter todos os tipos de público dentro do negócio para que os próprios clientes se sintam bem confortáveis”.
O maitre, dirigente sindical do Sinthoresp e diretor operacional da Escola de Hotelaria da entidade, Darly Abreu, pondera, contudo, que essa diversidade muito grande de idades “na verdade” expõe a “situação desagradável que o país está passando”. “São muitas pessoas procurando emprego. E se tem uma pessoa de 62, 65 anos na fila, gente que está aposentada, ou com 55 anos correndo atrás de emprego, é porque a sua renda não está sendo suficiente para manter a casa. E quando o jovem também está aqui atrás do primeiro emprego é para ajudar o pai em casa. A gente vê que realmente a economia não está boa. E nosso país não está bem em termos de uma economia para termos pleno emprego”, afere Abreu.
O feirão é o primeiro que o Sinthoresp realiza, mas a demanda por vagas acabou surpreendendo a própria entidade sindical. Às vésperas do evento, na terça, já eram 1.500 currículos cadastrados no site do sindicato. Com o número de comparecimento presencial, cerca de 3 mil pessoas, o atendimento precisou ser ampliado para até esta quinta. Apesar do número de oportunidades ser brutalmente inferior à procura, o dirigente sindical acredita que o momento “está propício” a todos os profissionais “porque as empresas estão precisando e não estão encontrando”.
Não se pode escolher
“Esse feirão será um termômetro para isso. São quase 800 vagas. Se você não conseguiu preencher ela com 3 mil pessoas, então suas vagas não são interessantes. E por que? É salário? Tem que analisar se é o salário, a carga horária, a escala seis por um. As empresas vão precisar depois desse feirão fazer uma autoanálise”, diz Abreu.
A promessa das empresas é que os selecionados sejam informados em até 10 dias, a partir desta sexta (15), sobre a contratação. A média salarial das oportunidades disponíveis não ultrapassa os R$ 1.630. Mas mesmo assim o bacharel em Logística, Maxwel Carlos, de 40 anos, enfrentou 11 horas na fila em busca de uma nova oportunidade de emprego. Há três meses desempregado, depois de ser desligado do cargo de coordenador em uma empresa de transporte que perdeu faturamento com o aumento de preços dos combustíveis, ele também repete que está disposto a desempenhar qualquer função.
“Não tenho vaga específica e a expectativa é começar a trabalhar para a vida normalizar. Normalizar as contas e (sair) das dívidas. Na situação atual não dá para escolher. Tem muita gente formada que está trabalhando em serviços gerais. Eu tenho uma família, não posso ficar parado”, enfatiza Maxwel Carlos que foi o primeiro a chegar na fila, às 21h da terça.
‘Que não seja só promessa‘
Na rede Tivoli, onde o quadro de retomada vem sendo superior ao que o hotel tinha em 2019, segundo a gerente de recursos humanos, a grande aposta da feira é justamente encontrar perfis diferenciados para dar oportunidade de acesso ao mercado de hotelaria a pessoas de outras áreas. “Isso de fato vai nos ajudar a agregar mais mão de obra de qualidade” comenta Ingrid.
Ela diz que foi preciso também mudar o perfil para se adequar a quem busca também qualificação profissional. A proposta do feirão de triagem de currículos, selecionados pelas empresas, é que esse trabalhador seja capacitado pelo próprio hotel após ser contratado.
Darly Abreu também acredita que, pela alta rotatividade do setor, a previsão é que mais vagas surjam para os que não forem contratados. Nesse caso, os currículos desses profissionais ficarão em um sistema interno do sindicato chamado Bolsa de Empregos.
Ao deixar a sede da entidade, por volta das 11h, Valdeci reproduziu o que ouvira. “Ela falou que tem que esperar agora”, explicou, com um semblante um pouco menos esperançoso do que mostrava na fila. Mesmo assim, no país que se apequenou diante de seus sonhos de seguir, ela torce. “Espero que não seja só mais uma promessa.”
Fonte: Brasil de Fato