Se o Centro Cultural Usina do Gasômetro passar para o controle dos arrematadores, nada garante que continuará existindo
O maior ícone arquitetônico de Porto Alegre, que projeta sua chaminé de 117 metros de altura no perfil da capital gaúcha, está sob ameaça. É a Usina do Gasômetro, desde os anos 1990 transformada em centro cultural e ponto de encontro da cidade às margens do rio Guaíba. Como o prédio pertence à Eletrobras e o governo Bolsonaro decidiu vender a estatal em 2022, a transferência para mãos sem qualquer compromisso com a cultura e a cidadania pode, no limite, deixar apenas na memória o símbolo inquestionável da identidade da capital.
Receoso pelo futuro do centro cultural, o prefeito Sebastião Melo (MDB) aproveitou a motociata promovida por Jair Bolsonaro em Porto Alegre, no último fim de semana, para fazer um pedido ao presidente. “Encaminhamos a sua consideração a possibilidade de a União efetivamente doar a Usina do Gasômetro ao município de Porto Alegre”, diz o ofício.
“Cartão postal”
“A preocupação do Executivo é com o futuro de um dos cartões postais da capital gaúcha, já que a Eletrobras – proprietária do imóvel – está no Programa Nacional de Desestatização do governo federal”, argumenta o secretário de comunicação da prefeitura, Luiz Otávio Prates. “O risco – prossegue – é que seja privatizada uma das maiores identidades da capital, prejudicando o projeto do parque urbano Orla do Guaíba, já em pleno andamento”. Mas, diz, o prefeito está “confiante” no acolhimento da proposta.
“Perder a Usina seria como deixar de ter a vida ao pôr do sol naquele lugar da cidade”, comenta o jornalista Adroaldo Corrêa. Ex-coordenador de Descentralização da Secretaria Municipal de Cultura (SMC), ele trabalhou com o centro cultural durante seis anos, promovendo peças teatrais para crianças, teatro de rua, música, dança, hora do conto, cirandas, abertura do Carnaval além dos debates e eventos do Fórum Social Mundial.
“Espaço tornou-se mais privado”
Diretor da Usina em 2003, Gilmar Eitelvein lembra que o espaço sempre foi “de pluralidade e diversidade artística”, algo que foi perdendo após 2004, com o final dos 16 anos contínuos de gestões municipais do PT e a ascensão de governos mais conservadores.
“O publico aos poucos foi sendo retirado do centro, tornando-se cada vez mais espaço privado, de vários grupos”, afirma. Segundo Eitelvein, “o poder público aos poucos foi abandonando sua participação e deixou, também, de representar os anseios de vários setores independentes e autônomos, da cultura popular”. E acentua que “deixou de mediar, incentivar, abrir canais e portas para amplos setores culturais que vivem à margem da indústria cultural”.
Usina quase foi demolida
Apesar do nome “Usina do Gasômetro”, a planta queimava carvão mineral para produzir energia – o batismo veio por conta da proximidade com uma usina movida a gás. Projetada na Inglaterra e inaugurada em 1928, foi uma das primeiras edificações de concreto armado do Rio Grande do Sul. Deixou de operar em 1974 e, por pouco, não foi posta abaixo. À época, a reação dos porto-alegrenses impediu que fosse derrubada para dar lugar à avenida que margeia o rio.
Porto Alegre administra o espaço, cedido por tempo indeterminado, desde 1982. Abandonado havia oito anos, o prédio estava com o interior devastado. Os primeiros movimentos para sua recuperação começaram no governo Alceu Collares (PDT). O investimento das administrações seguintes – Olívio Dutra, Tarso Genro, Raul Pont e João Verle – permitiu a inauguração e manutenção do centro, que abriga teatro, cinema, galerias e outros equipamentos.
Desde 2017, porém, a Usina está fechada para obras. Prates conta que, ao ser reinaugurada em 2022, terá “diversas áreas de exposição, foyer, e espaços multiusos, sala de dança e áreas técnicas”, além de restaurante com vista panorâmica no quarto andar.
“Típico de governos neoliberais”
O prefeito não quer perder a Usina para o comprador da Eletrobras mas há anos o governo municipal discute a terceirização da sua gestão. Ou seja, uma forma mais branda de privatização, como já aconteceu com outro ponto cultural da cidade, o auditório Araújo Vianna, em 2007. Na mesma mira das concessões à iniciativa privada estão a cinemateca Capitólio, o centro municipal Lupicínio Rodrigues e o arquivo histórico Moisés Vellinho.
“Isto é típico de governos neoliberais”, critica o ex-diretor. “Só a mão pública dinamizaria o espaço (da Usina) do modo que a cidade já conheceu, com programação 90% gratuita”, reforça Corrêa. Para Eitelvein, Melo segue as diretrizes conservadoras dos prefeitos que o antecederam e que pertencem ao mesmo agrupamento político.
“Desde que assumiram, com o (José) Fogaça, em 2004, privatizam espaços e centros culturais. A lógica é a mesma: cultura não é prioridade e o poder público não tem interesse em criar projetos ou impulsionar programas que deem vida à cultura popular”, questiona Eitelvein. E resume: “Eles só se interessam por aquilo que o mercado oferece”.
Fonte: Brasil de Fato RS