Primeiro motorista a processar a Uber no Brasil: “O algoritmo é o novo capataz”

Wagner Oliveira relatou batalha judicial em livro e lançou canal no Youtube para incentivar colegas a buscarem direitos

“Sou o primeiro motorista expulso da Uber no Brasil e o primeiro a ajuizar uma ação contra a empresa por solicitação de vínculo de emprego.” Esse é o cartão de visitas de Wagner Oliveira, que há cinco anos denuncia abusos dos aplicativos de transporte de passageiros.

A saga de Oliveira contra a multinacional estadunidense virou livro em março deste ano. Em Minha batalha contra a Uber, o ex-motorista de 60 anos relata sua derrota nos tribunais e faz críticas contundentes à empresa.

“A Uber nada mais é do que uma organização criminosa planetária, que pratica crime por algoritmos”, diz.

“O algoritmo substitui o gerente da empresa, que fica no pé do funcionário, e substitui o capataz da fazenda, que dava chicotadas nos escravos. E ele não dorme. É uma máquina, uma função do computador, e faz uma vigilância implacável do motorista 24 horas por dia”, ressalta.

Na linguagem técnica, algoritmo é uma sequência finita de instruções ou operações executado para resolver um problema computacional.

No caso dos aplicativos de transporte, é uma ferramenta que reúne todas as informações disponibilizadas pelo motorista e pelo passageiro e, a partir delas, define preços e trajetos, prioriza um trabalhador em detrimento de outro, estabelece punições e recompensas.

Ironicamente, a experiência negativa de Oliveira como motorista de aplicativo abriu oportunidade para novos trabalhos.

A Uber nada mais é do que uma organização criminosa planetária, que pratica crime por algoritmos.

Além da venda do livro, ele se mantém com um canal no Youtube, onde posta vídeos diários sobre os abusos da Uber e empresas semelhantes, e presta consultoria a motoristas que querem buscar seus direitos na Justiça.

“Já estimulei mais de 2 mil motoristas a ajuizarem ação contra a Uber e uns 3 mil a deixarem a plataforma”, orgulha-se.

“Mas tem muito desemprego, e o trabalhador vê no aplicativo uma tábua de salvação, quando na verdade é o buraco mais fundo em que ele vai cair.”

O canal tem cerca de 16,7 mil usuários inscritos, e o público-alvo são trabalhadores de aplicativos. No vídeo mais assistido deste ano, com cerca de 25,5 mil visualizações, Oliveira comenta uma entrevista do presidente-executivo da Uber, Dara Khosrowshahi, sobre o mercado brasileiro.

Motorista de aplicativo configura vínculo trabalhista?

Mestre e doutora em Direito do Trabalho, Adriana Calvo situa o debate sobre o trabalho em aplicativos em um contexto de revolução digital, que trouxe consigo a ideia de economia colaborativa.

“É uma visão minimalista, que propõe compartilhar bens para diminuir custos e melhorar serviços”, explica. “O objetivo inicial era positivo, mas as empresas viram nessa ideia a oportunidade de criar uma nova forma de trabalho, precarizado e sem regulamentação.”

A jurista faz um paralelo entre o atual momento histórico e a 1ª Revolução Industrial, que introduziu as máquinas a vapor no século 18.

“O trabalhador não tinha direitos, era superexplorado, com longas jornadas, e o empregador tinha lucros sem fim, porque não havia direito do trabalho”, lembra. “Hoje, temos uma nova forma de trabalho, mas uma CLT pensada para um momento histórico anterior.”

Para o presidente da Comissão de Direito do Trabalho da Ordem dos Advogados do Brasil em São Paulo (OAB-SP) e livre docente da Universidade de São Paulo (USP), Jorge Pinheiro Castelo, a relação entre as empresas de transporte por aplicativo e os motoristas configura vínculo de trabalho.

“Existe uma confusão entre o conceito de economia compartilhada e de compartilhamento de pessoas”, analisa. “A primeira é o compartilhamento de bens, como imóveis, no caso do Airbnb, ou bicicletas, patinetes.

Outra coisa é o compartilhamento de pessoas, que está relacionado à exploração do trabalho humano pelos gestores dos aplicativos.”

Ao se apresentar como uma empresa de tecnologia, e não de transporte, a Uber se abstém de garantir condições de trabalho adequadas.

“O custo operacional é todo do motorista. Ele tem que alugar um carro, pagar manutenção, gasolina, que está caríssima. E o que a plataforma recebe não é só os 25% que ela define como margem, mas os dados das pessoas, que têm valor inestimável”, acrescenta o jurista.

Castelo afirma que a maioria dos motoristas que reivindicam relação de emprego com a Uber pedem enquadramento nas regras tradicionais da CLT, dificultando a comprovação do vínculo.

Na interpretação do especialista, os motoristas de aplicativo realizam um trabalho intermitente, regulamentado na reforma trabalhista de 2017.

“Foi uma das únicas coisas boas daquela reforma, que de modo geral é lamentável. Talvez eles nem tenham observado isso”, pontua.

O parágrafo 3º do artigo 443 da CLT estabelece que o trabalho por demanda – válido para qualquer tipo de atividade do empregado ou do empregador, exceto aeronauta – pode se configurar como relação de emprego intermitente.

“A reforma estabelece uma nova forma de habitualidade, que é descontínua. É o que permite ao motorista desligar o aplicativo ou recusar algum serviço, sem que isso desconfigure o vínculo”, explica Castelo.

Desde 2011, o artigo 6º da CLT já afirmava que não há distinção “entre o trabalho realizado no estabelecimento do empregador, o executado no domicílio do empregado e o realizado a distância, desde que estejam caracterizados os pressupostos da relação de emprego.”

O mesmo artigo acrescentou que “os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio.”

Para Castelo, isso significou o estabelecimento de “uma nova subordinação jurídica, que é a subordinação por aplicativo.”

Adriana Calvo, que atua na mesma comissão da OAB, discorda da interpretação de que motoristas são empregados, nos atuais termos da CLT.

Mesmo que fossem intermitentes, na visão dela, eles não cumprem os requisitos dos artigos 2º e 3º da CLT – “considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário.”

“Entendo que subordinação por aplicativo não se encaixa no conceito clássico de subordinação, e portanto não se encaixa na nossa legislação”, analisa a jurista.

Leia também: Aluguel, dívidas, gasolina: motoristas de app relatam desespero para fechar as contas

Não é só no Brasil que a legislação não acompanha as transformações da sociedade. Na América do Norte e na Europa, diferentes caminhos vêm sendo apontados como forma de garantir direitos aos trabalhadores de aplicativo.

“O Reino Unido usa uma 3ª categoria, que é o trabalhador parassubordinado. Ou seja, ele não é nem totalmente empregado, nem totalmente autônomo”, exemplifica Calvo.

“Pelo olhar do direito americano, eu tendo a olhar para o motorista e pensar no que ele não é. Quero dizer que ele não é empregador, não é empreendedor, e não é totalmente independente”, acrescenta.

“Por isso, eu vejo com bons olhos a tese da 3ª categoria. Funcionaria como no caso dos representantes comerciais, portuários, que têm regras específicas e direitos mínimos.”

Se há algum consenso entre os juristas, é de que a situação não pode continuar como está: um trabalho precarizado, com zero direitos.

A história de Wagner

Antes de trabalhar para a Uber em Belo Horizonte (MG), Wagner Oliveira morava no interior do estado. Era sócio de uma empresa, com três carretas, que transportava cimento do interior de Minas Gerais até cidades do Vale do Aço – Ipatinga (MG) e Governador Valadares (MG).

Os falecimentos da esposa, em 2013, e da mãe, em 2014, motivaram sua mudança para a capital. Ao desfazer a sociedade, Oliveira ficou com um cavalo mecânico – conjunto formado pela cabine, motor e rodas de tração do caminhão –, que trocou por um carro de luxo ao chegar a Belo Horizonte.

Com o veículo escolhido, Mitsubishi Outlander, ele se encaixava na opção Uber Black, a primeira lançada pelo aplicativo no Brasil, que só permitia sedãs de luxo ou utilitários esportivos, com bancos de couro.

A multinacional acabava de chegar ao país, meses antes da Copa do Mundo de 2014. Eram tempos pré-crise, e Oliveira apostou todas as fichas na novidade.

No fim das contas, foram menos de sete meses de trabalho como motorista de aplicativo.

“Espionagem”

A orientação que Oliveira recebeu à época era ficar calado e conversar o mínimo possível com o passageiro, por se tratar de um transporte executivo.

“Eu sou muito falante, então descumpria essa regra toda hora. Fui suspenso três vezes por 48 horas, duas vezes por 72 horas, até ser definitivamente excluído da plataforma”, conta.

O ex-motorista diz que a exclusão do sistema não foi resultado de reclamações dos passageiros, mas de um monitoramento remoto da Uber.

“A Uber é um negócio de espionagem, no segundo plano. Eles estavam me espionando. Eles ligam a câmera e o áudio do motorista dentro do carro, escutam a conversa e filmam tudo, sem o passageiro saber”, afirma Oliveira.

Brasil de Fato entrou em contato com a assessoria de imprensa da Uber e apresentou todas as denúncias, críticas e questionamentos feitos pelo ex-motorista. Não houve retorno até o fechamento da matéria.

A empresa informa aos usuários que há um mecanismo de monitoramento chamado U-Câmera, mas sua ativação depende do aval do motorista e do passageiro.

“O motorista parceiro poderá gravar as viagens usando a câmera do celular. Você receberá um aviso no app informando que o motorista poderá filmar a viagem. E caso não se sinta confortável, você vai poder cancelar a viagem, sem nenhum custo adicional”, diz a propaganda.

A Uber diz ainda que “todas as gravações ficarão armazenadas em uma nuvem de forma criptografada e inacessível tanto para você quanto para o motorista parceiro”.

A empresa só poderia acessar as imagens caso o motorista reporte um incidente de segurança ao aplicativo. Caso não ocorra nenhuma denúncia, as imagens seriam deletadas em 30 dias úteis.

A conta não fecha

Oliveira é formado em Administração de Empresas e morou seis anos nos Estados Unidos. Além de facilitar a busca de notícias sobre processos judiciais contra a Uber pelo mundo, em inglês, essa bagagem permite um olhar crítico sobre o custo que os aplicativos transferem ao motorista.

Rodando a R$ 0,40 ou a R$ 0,90 por quilômet.ro, o motorista de aplicativo finge que ganha e a família finge que acredita.

“Motorista de aplicativo só faz conta de combustível. Posso dizer que 95% não sabem o que é lucro líquido, lucro bruto, depreciação veicular”, lamenta.

Consideradas todas as despesas, em um cenário de aumento do preço dos combustíveis, Oliveira diz que muitos motoristas terminam o mês no vermelho.

“Rodando a R$ 0,40 ou a R$ 0,90 por quilômetro, que é a variação da Uber e da 99, o motorista de aplicativo finge que ganha e a família finge que acredita”, analisa Oliveira.

“O quilômetro do táxi, hoje, no Brasil todo, está na faixa de R$ 3,00 desde janeiro de 2016”, compara.

“E o táxi tem isenções fiscais, que o Estado dá para preservar a frota e manter a tarifa a mais baixa possível. Se a Uber não tem essas isenções, o quilômetro rodado deveria ser de R$ 4,00 para cima.”

Para sustentar esses valores, Oliveira afirma que a Uber conta com a conivência dos três poderes e da mídia corporativa.

“A imprensa está rendida ao capital especulativo internacional. Ela esconde tudo isso do grande público, e os políticos defendem a plataforma porque não querem ficar contra o cliente, que é o eleitor”, critica.

“O aplicativo promove a ilegalidade, a evasão de divisas, a sonegação de impostos, o caos no trânsito, e polui as nossas cidades.”

Avanço a passos lentos

Wagner Oliveira, que acompanha o andamento das ações ajuizadas por motoristas da Uber em todo o país, comemora decisões recentes de tribunais de Minas Gerais e do Rio de Janeiro, que reconheceram vínculo empregatício.

“Estamos movimentando a Justiça do Trabalho, e eu incentivo diretamente os motoristas a processarem a Uber”, conta.

O processo que ele próprio ajuizou, na 44ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte, foi encerrado em 30 de abril de 2019 com decisão favorável à empresa.

“Muitos juízes e desembargadores não sabem nada de aplicativo e estão julgando errado, por ideologia política ou por desconhecimento de causa. Fui prejudicado porque essa discussão ainda está efervescente. Tivemos avanços, mas o debate poderia estar caminhando mais rápido”, analisa Oliveira.

Nos últimos meses, segundo a 11ª Câmara do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região (TRT-15), a Uber vem oferecendo acordos a motoristas que estão prestes a ganhar ações na Justiça, de modo a impedir uma jurisprudência que reconheça o vínculo empregatício.

A “estratégia de manipulação da jurisprudência” – expressão usada no voto do desembargador João Batista Martins César – é cada vez mais frequente.

“A maioria está conseguindo esses acordos. Eu estimo que tenha acontecido mais de 2 mil. No meu livro, relato 30 derrotas dos aplicativos. Na segunda edição, que eu pretendo fazer, vou incluir 300, que já estão documentadas”, afirma o ex-motorista.

“A senha do sucesso hoje, nas ações judiciais contra a Uber, é solicitar a quebra do código-fonte da Uber. Quando a gente pede isso, no processo judicial, a empresa logo aceita fazer acordo, para evitar que coloquem a mão na caixa-preta dela”, finaliza.

Fonte: Brasil de Fato

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